“No meu primeiro dia na aldeia Daritidzé, em fevereiro, despertei com a farra das crianças e achei que tivesse perdido a hora. Eram 4h, e os meus futuros alunos já me aguardavam nas carteiras pela aula que só começaria às 7h.

Muitos tinham medo até de me olhar: a maioria nunca havia saído da aldeia e visto um ‘waradzu’ (branco).

Nascido em Barretos, no interior de São Paulo, nunca sonhara em viver numa tribo indígena. Mas, aos 27 anos e recém-formado em biologia, não pude recusar o convite do cacique Cleto Tsimrihu Pariõwa para trabalhar numa aldeia do povo xavante na Terra Indígena Parabubure, em Mato Grosso.

Acertei a minha mudança numa visita à aldeia a convite de jovens que conheci nos 12º Jogos Indígenas (uma espécie de Olimpíada dos índios brasileiros), dos quais participei como voluntário.

Passados seis meses, hoje percebo que, embora a minha missão na aldeia tenha sido ensinar, lá aprendi lições que carregarei a vida toda, como a valorizar o momento presente, saber ouvir o outro e compartilhar o que se tem.

Os A’uwe Uptabi (povo verdadeiro), como se autodenominam os xavantes, somam cerca de 15 mil pessoas que habitam nove terras indígenas no Mato Grosso.

Como várias das mais de 300 etnias indígenas brasileiras – muitas com línguas e hábitos únicos –, eles vêm sofrendo diversos impactos externos.

Decadência

Nos últimos 70 anos, os xavantes perderam territórios tradicionais, o que os deixou ilhados, cercados por fazendas e cidades, foram assediados por missionários que buscavam ‘civilizá-los’ e viram o avanço de doenças causadas pelos novos hábitos alimentares, como diabetes, hipertensão e obesidade.

O menino Adônis Tsihoriwe aparece com a pintura típica do Oi'ó, uma luta entre clãs para exercitar o espírito guerreiro
BBC Brasil

O menino Adônis Tsihoriwe aparece com a pintura típica do Oi’ó, uma luta entre clãs para exercitar o espírito guerreiro

Apesar disso, a sua cultura tradicional continua bem viva. Em toda a aldeia, só cinco homens falam português, o que exige que eu tenha que aprender a língua xavante para me comunicar.

É difícil, já que não há qualquer parentesco com o português. Água se diz ‘ö’; banana é ‘pa’o’; obrigado, ‘hepari’.

Enquanto aprendo o idioma, sou auxiliado nas aulas por professores indígenas, que atuam como intérpretes. Leciono 11 disciplinas na aldeia, inclusive para adultos que não puderam completar o ensino médio.

Na primeira semana, pedi para ouvir os sonhos dos meus alunos. Ali, havia crianças que sonhavam em ser merendeiras, médicos, agricultores, professoras e até um piloto de avião!

O início foi desafiador. Mal tínhamos lápis e borracha, e os poucos livros didáticos não tinham qualquer relação com a realidade local.

Mesmo assim, eles se esforçavam ao máximo e me pediam tarefas para casa – feitas de noite à luz de velas, mesmo após um dia de trabalho pesado.

Quem acha que índio é preguiçoso está enganado. As mulheres cuidam dos filhos, lavam roupa e louça no rio, cozinham e cuidam da roça. Os homens dividem algumas tarefas com as esposas, além de pescar, caçar ou trabalhar na escola.

Minha maior dificuldade é lavar as minhas roupas: em vez de limpá-las, acabo sujando-as ainda mais.

‘Preconceito brutal’

Para o biólogo, a experiência na aldeia lhe possibilitou lições para toda a vida
BBC Brasil

Para o biólogo, a experiência na aldeia lhe possibilitou lições para toda a vida

Tenho alunas adultas que são analfabetas e demonstram exímio raciocínio matemático. Outras se esforçam em desvendar as palavras em livros e revistas que recebemos por doações.

Eles enxergam na escola a chance de terem melhores oportunidades na vida ou de conquistarem mais respeito na relação com a sociedade ao seu redor, onde sofrem um preconceito brutal.

Eventualmente um tatu cruza o campo de futebol da aldeia durante a aula. Todos os alunos correm em disparada para capturar o animal e cozinhá-lo.

Respeito o contexto em que estou inserido, mas confesso que, no fundo, torço para que o bicho consiga fugir.

O tempo na aldeia é completamente diferente do das cidades. Há um respeito muito grande pelo momento de cada um se manifestar, por ouvir o próximo – por isso a palavra é de fundamental importância – e uma rede de solidariedade em que parentes distantes se ajudam sem medir esforços.

Hoje, tenho livros e cadernos para trabalhar na escola; amanhã, tudo pode estar devorado pelos cupins.

Ali, vive-se o agora, o momento presente, pois não há garantias de que o amanhã será bom, haverá comida suficiente ou uma criança continuará viva.

No ano passado, a cada três dias, uma criança xavante morreu por diarreia – a maior taxa de mortalidade infantil entre os povos indígenas brasileiros. Há graves falhas no atendimento médico.

A primeira aula do biólogo começou às 19h, mas os alunos o esperavam desde as 4h
BBC Brasil

A primeira aula do biólogo começou às 19h, mas os alunos o esperavam desde as 4h

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